A Utopia da Liberdade Vigente

Quando fiz o Enem de 2010 o tema da redação pedia para dissertar sobre “O trabalho na construção da dignidade humana”. Não lembro exatamente sobre o que escrevi, mas lembro de dar ao texto o título: A utopia da dignidade vigente. Foi um daqueles momentos que você consegue unir no título as palavras que você mais gosta – no meu caso: utopia e vigente – e dar ao texto um tom profundo e intelectual que talvez você nem entenda muito bem o que está fazendo, mas ainda assim o faz. Por que essas palavras? Não faço ideia. Só me lembro de conseguir tirar 800 pontos e de dar total crédito a esse título. Fui assolada em tantos momentos pela tal da síndrome da impostora ao escrever este texto aqui, que no fim, resolvi dar à ele um dos meus títulos favoritos, só para talvez empregar à ele um tom profundo e intelectual que talvez eu nem entenda muito bem o que estou fazendo, mas ainda assim o faço para ter onde ancorar a minha autoconfiança.

Palavras são importantes para mim. E talvez seja por isso que estou aqui também. Me lembro que no livro Comer, Rezar, Amar, a escritora Elizabeth Gilbert se coloca inicialmente como uma mulher à procura de sua própria palavra. E acredito que assim somos todas nós: mulheres em busca de suas palavras. Mas quando olho para o coletivo, e para a minha geração de mulheres, sinto que a palavra que mais representa o que ainda estamos buscando seja: liberdade.

Tenho pensado muito no quanto “já” somos livres. E entendo que num primeiro momento podemos nos enganar sobre essa liberdade, por, muitas vezes, ficar respaldada na superfície da comparação com a vida das nossas mães, avós, bisavós, tataravós, e etc, e assim acreditar brevemente que podemos fazer tudo, porque estamos ocupando lugares que antes não ocupávamos, pois sim, avançamos! Mas, será que conquistamos a liberdade?

Penso que a liberdade para ser plena precisa ocupar as mais diferentes esferas da vida. Transformar a estrutura da sociedade para alcançar autonomia política, emancipação financeira, e outras independências essenciais para a nossa vida, que ainda estão somente no começo dessa nossa conquista. Mas acredito também que existem liberdades mais subjetivas na vida das mulheres, que para a sociedade (lê-se patriarcado) são tratadas talvez como sutis idiossincrasias, mas que na verdade são bem viscerais em nosso existir feminino e cotidiano.

Esses dias, ouvindo a podcaster Renata Ceribelli, ela começava um dos seus episódios citando uma passagem do livro “A Indomável” da Glennon Doyle, onde ela expressa sua visão de como nós mulheres domesticamos nossas vontades e reprimimos nossos reais desejos pelo fato de desde pequenas estarmos sempre observando nosso querer olhando para fora, para o que esperam de nós, o que esperam que desejemos e o que nos permitem desejar, ao invés de nos olharmos internamente e reconhecer o que realmente queremos. O desejo e a liberdade andam de mãos dadas. Não vejo essa liberdade quando escuto outras mulheres, e até eu mesma, preocupadas com aquilo que vão pensar a nosso respeito pelo nosso comportamento x ou pela fala y. Principalmente quando noto que nesses momentos nós apenas expressamos genuinamente o que desejávamos. Temos a liberdade de poder dizer o que queremos, mas não nos dão espaço para que sejamos devidamente interpretadas. A impressão é que nunca podemos fazer emergir nossas verdades, porque tudo que é real nas mulheres incomoda. O corpo real, fora do padrão, incomoda. Sua barriga real incomoda. Sua opinião incomoda. Sua nudez incomoda ou é hipersexualizada. A verdade feminina, não idealizada, causa asco nas expectativas perfeitas do patriarcado. Penso que a superficialidade nas discussões sobre gênero, masculinidades e feminismo, trazidas pelas mídias que só tentam lucrar com isso, criou uma falsa sensação de liberdade.

A ilustradora Polly Nor retrata isso muito bem em seu trabalho quando representa as mulheres lidando com seus demônios em seus recintos íntimos. Quando chegam em casa e ficam sozinhas, sendo livres para finalmente serem quem são. Encarar aquilo que a sociedade pede para deixar escondido, e assim o fazemos muitas vezes, para sermos aceitas, é o momento que podemos nos encarar por inteiro. Polly trata das nossas ansiedades, frustrações e desejos. Aposto que muitas mulheres exaustas se reconhecem em algumas dessas ilustrações, tomando seu vinho do final do dia. O diabo e as entranhas do mundo feminino sempre estiveram associados. Polly escracha a intimidade feminina através desses demônios como sendo parte do nosso subconsciente.

Ilustração: @pollynor

A Falácia da liberdade feminina fica muito nítida sob a ótica da sexualidade. Vejo que nossa sexualidade não é cerceada somente pelos inúmeros tabus que estão envolvidos na possibilidade da mulher também sentir prazer. Que mulher nunca se sentiu objetificada depois de gozar da sua aparente liberdade? Acredito que isso pode se aplicar principalmente nas relações heterossexuais. Muitas vezes, esse discurso esconde uma nova maneira que o machismo encontrou de nos vitimizar através de uma falsa consciência sobre o que podemos fazer. A controvérsia existe porque nós realmente podemos fazer e talvez estejamos fazendo porque queremos. Mas isso não significa que somos interpretadas dessa maneira. Que entendem o nosso desejo como uma expressão da nossa verdadeira vontade. Essa situação mascara, muitas vezes, o fato de estarmos, algumas vezes, agindo exatamente como esperam que ajamos. E sob o discurso da sua liberdade, você acaba contribuindo, sem querer ou perceber, nesse sistema de objetificação de nós mesmas.

Se pensarmos então que, a nossa liberdade sexual muitas vezes é utilizada pelo machismo como um mecanismo de continuidade da objetificação de nós mesmas, não seria muito mais transgressor e revolucionário a possibilidade de dizer mais nãos ao invés de sins?  Dizer não também pode ser um ato político. Muitas vezes, mais poderoso do que o seu sim. Aprendi isso da maneira mais dura possível, e talvez, ainda, vá dizer alguns sins querendo dizer não. Mas identificar nossos limites, tenho aprendido na terapia, não é tarefa fácil. 

Nina Simone sempre dizia que liberdade é não ter medo. E por si só acredito que o texto poderia se findar aí, se entendermos que o medo simplesmente acompanha todas as ações e decisões que nós mulheres fazemos e tomamos, todos os dias. Tive medo de escrever esse texto, confesso. No último ano, tive crises de pânico, porque tive medo de praticamente tudo que me rodeava. Inclusive de mim mesma. Sim, eu tive medo do que eu sentia e via dentro de mim. Tive medo dos meus demônios. E infelizmente, como mulheres, tememos eles e outras coisas o tempo todo. 

Dona da tua vontade você é e sempre será. No fim das contas a liberdade maior é não esperar essa chancela da sociedade ou dos outros sobre você ser livre. É você se libertar de si mesma e dessas amarras que te cancelam cotidianamente. Essa é a verdadeira liberdade. Desapegar-se das expectativas de gêneros que estão impostas em você e se permitir. Doa a quem doer. Entenda quem entender. Perceber que ser livre é muitas vezes um ato solitário e que quase sempre não será chancelado por quem você espera que entenda sua liberdade. Mas invariavelmente você vai encontrar amigas para compartilhá-la. É por isso que estou aqui. Porque é isso, a liberdade que realmente importa, tem que vir de dentro. 

Portanto, mulher exausta e livre, mergulhe em si mesma, aprenda a identificar e ouvir seus reais desejos, não fique à espreita, na soleira da porta com medo de descobrir o que é que tem do outro lado. Atravesse-a, pegue nas mãos dos seus demônios e mantenha-se sempre atenta, pois já dizia Thomas Jefferson: o preço da liberdade é a eterna vigilância. E se um homem, branco, norte-americano, cisgênero, heterossexual e presidente dos Estados Unidos estava atento que sua liberdade podia ser cerceada, imagina como nós devemos nos manter!?

Eu poderia dar a este texto a palavra “coragem”. Coragem para que ousemos desejar e ser livres. Sermos livres de nós e nos permitir. Coragem para encarar e desencarcerar nossos demônios. Levá-los para dar uma volta. Afinal, a utopia da liberdade vigente é essa, acreditar que somos livres para a sociedade, quando na verdade, o patriarcado também está se movimentando e conseguindo se aproveitar da nossa luta. Mas vou copiar a escritora Elizabeth Gilbert e escolher para nós a palavra italiana attraversiamo, que na tradução ficaria “vamos atravessar”. Para que atravessemos todas nós, nossas próprias soleiras, agarremos às mãos dos nossos demônios do outro lado, e sejamos libertas, por nós mesmas. Permaneçamos atentas: a sua liberdade vem de dentro, e talvez, começar a questionar e identificar a real motivação dos seus quereres seja a verdadeira liberdade.

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